segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Ser Tiago em Santiago

São cinco da tarde e o sol desprende-se das nuvens que o esconderam durante quase todo o dia, dando à Cidade Velha uma luz dourada que a iluminará por exactamente cinquenta e seis minutos, até mergulhar decididamente no mar. De um lado, meia dúzia de miúdos chutam a água em frente aos barcos que já voltaram da pesca, aproveitando os últimos raios de sol de um dia quente de Novembro. Do outro, duas mulheres lavam roupa no mar e estendem-na nos calhaus. Ouvem-se as vozes das gentes que ao fim do dia se juntam na praça do pelourinho.
Estou sentada no Teruro di Kultura, um café com uma simpática esplanada naquela que foi outrora a primeira cidade fundada por portugueses a sul do Saara. Vim para fotografar, mas deixei-me invadir por uma vontade irresistível de olhar. Apetece-me ficar quieta a imaginar por onde terão entrado os piratas que saquearam a cidade nos séculos XVI e XVII. Ainda nem me sentei, quando os meus pensamentos são interrompidos por um choro miudinho que não tem nada de crioulo. O Tiago acordou e, com a autoridade dos seus seis meses, não parece disposto a partilhar a minha atenção com um pôr-do-sol que tinha tudo para ser avassalador.
 Viajar com crianças pequenas é mesmo isto. É perder “aquele” mergulho nas águas cálidas do Tarrafal, porque o sol está forte. É deixar fugir a Passadinha, porque ele se engasgou (ou não!). É não sair do carro na Serra da Malagueta, porque ele tem fome. É adiar para sempre uma conversa irrepetível, porque ele tem sono. É antever momentos únicos, passar-lhes ao lado e sonhar com eles ao adormecer se a noite for calma.
Mas não é só isso. É também ver os olhos dele brilhar ao molhar os pés no mar pela primeira vez, ali na praia de São Francisco, e a fechar-se enquanto passeamos ao longo da praia Gamboa. É descobrir sítios improváveis cada vez que suja a fralda e pessoas genuínas que nos acolhem com simpatia e generosidade. É partilhar a sua excitação com o primeiro banho de piscina e a sua serenidade ao ver o pôr-do-sol no bar do hotel Praia Mar, que, ainda que mais modesto que o da Cidade Velha, nos mostra a imponente ilha do Fogo a erguer-se por detrás da praia de Quebra Canela.
 E é ainda mais. É ajudá-lo a segurar na mão de uma menina crioula que nos segue durante quase uma hora no mercado de Sucupira. E vê-lo repetir a proeza dezenas de vezes com todos os outros meninos e meninas que vamos conhecendo nas ruas da Praia. Com o passar dos dias, é ele que tem que os ajudar a vencer a estranheza que mostram por nunca ter visto nenhum bebé branco. Como a Kelly da Calheta de São Miguel, por exemplo, ou a Natalina que costuma estar no Plateau com a mãe Gutu. A Kelly põe-se em bicos de pés para espreitar para dentro do carrinho e volta-se para a mãe, boquiaberta, fazendo tardar o “ajunta mô”. Enquanto isso, eu e a mãe dela conversamos sobre o aparecimento dos primeiros dentes e sobre a sua precoce aquisição de marcha aos sete meses. Já a Natalina, que vai fazer dois anos na véspera de Natal, é mais atrevida e quer passear o Tiago nas imediações do mercado, ou mexer-lhe nos pés testando-lhe o riso. Gutu, atrapalhada, pede desculpa pela filha, que vai soltando gritinhos de alegria. – Cá tem problema!, respondo-lhe eu procurando um olhar cúmplice.
 Viajar com o Tiago é descobrir o mundo enquanto ele se descobre a si próprio. É mostrar-lhe que, sozinhos, seremos sempre pequeninos. Por isso, devemos procurar um amigo em cada sorriso devolvido.

2 comentários:

  1. É isso tudo, P.! E é ainda mais.
    Viajar com crianças é dar-lhe asas, e é voar nas asas delas.

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  2. E tu sabes bem... ;) Eu contava voar nas asas dele para bem longe em breve, mas houve mudança de planos. Vamos ter que esperar que outra borboleta saia do casulo! ;)

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